sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Direito de não ser processado

Ontem, 27 de agosto, o STF decidiu não receber denúncia contra o ex-ministro e ora deputado, Antônio Palocci. Ele havia sido denunciado por ter promovido a quebra de sigilo bancário do caseiro de um imóvel em Brasília, que seria utilizado para encontro de lobistas. A denúncia envolvia, ainda, o então assessor de imprensa do Ministério da Fazenda e o presidente da Caixa na época.
Evidente que a quebra de sigilo deve ser punida, na medida em que a Constituição protege a intimidade e a privacidade de todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país. Evidente, também, que só vão ser punidas as pessoas que - efetivamente - contribuíram para que a invasão da privacidade tenha ocorrido. Ainda mais evidente são os contornos políticos do caso - tanto para um como para outro lado.
O STF já decidiu (recebeu a denúncia em relação ao ex-presidente da Caixa e rejeitou - por margem apertada, 5 a 4, em relação a Palocci e seu assessor), e não há o que se fazer em relação ao fato.
Embora processso penal não seja exatamente a minha área, vou me permitir comentar um aspecto da decisão: é legítimo que o Estado processe penalmente alguém - alegando, portanto, que cometeu um crime - sem ter embasamento consistente que aponte que isso tenha ocorrido?
No direito penal, aplica-se o princípio do in dubio pro reo. Segundo ele, se, concluído o processo, restar alguma dúvida de que o réu tenha cometido o crime, este deve ser absolvido. Veja: ninguém diz que ele é inocente, apenas não se pode dizer que é culpado (em inglês, são utilizadas as expressões "guilty" - culpado - e "not guilty" - não culpado, num raro caso em que o inglês parece ser mais preciso que o português).
No entanto, alguns defendem que, no momento de recebimento da denúncia, valeria outro princípio - o in dubio pro societate, ou, "em dúvida, pró-sociedade". Segundo ele, na dúvida, a denúncia é recebida. Até porque as dúvidas poderão ser sanadas ao longo do processo. E, se persistirem, aplica-se o in dubio pro reo.
No entanto, existe uma outra coisa a ser considerada. O simples fato de ser processado, de lhe ter atribuída a prática de um crime, é, por si só, degradante. Embora ainda esteja sendo processado, o cidadão sofre - e ninguém negaria isso - uma "repressão moral", pelo fato de que a sociedade teria a tendência de vê-lo, desde já, como criminoso, perdoando-o, ao final, se vier a ser inocentado.
Até por isso a legislação processual penal foi recentemente modificada (Lei 11.719, de junho de 2008), para incluir, entre as exigências para o recebimento da denúncia, um pressuposto chamado justa causa. A justa causa se caracterizaria pela existência de um mínimo de provas que apontem para a ocorrência do crime e para a caracterização daquele acusado como sendo o quem o cometeu.
Se isso não for demonstrado - minimamente - nem se processa, para evitar a degradação de ser processado.
Você pode até achar isso absurdo e afirmar que prefere que as pessoas sejam processadas e inocentadas, só ao final, caso não se consiga obter as provas. Mas, você só acha isso porque não é você o processado.
Lembre-se que todos podermos ter desavenças (de todos os tipos) com alguém; e, se esse alguém tiver poder pra isso, corremos o risco de sermos alvos de um processo absolutamente insustentável. Nesse caso, não iríamos concordar com o in dubio pro societate.
De qualquer forma, voltando pra decisão de ontem, sou levado a entender - pelo que li a respeito dos votos dos ministros - que foi esse raciocínio que levou o STF à rejeição da denúncia.
Não tenho nenhuma condição de afirmar se existia, ou não, um mínimo de provas pra justificar que a denúncia fôsse recebida, por isso não vou "avaliar" (quem sou eu!) a decisão.
Só gostaria de levantar um aspecto. Em casos como esse, o prejuízo que poderia advir pra pessoa, por ser processado, costuma ser menor do que aquele que ela já sofreu - em razão de tudo que já se falou a respeito e de tudo que a imprensa possa ter veiculado. Normalmente, o julgamento da imprensa tende a ser mais severo que a própria existência de uma investigação policial ou ação penal (isso, claro, se a imprensa não optar por deixar de falar no assunto). Não são raros os casos em que a imprensa destrói vidas em julgamento apressado que, depois, se mostra equivocado (exemplo maior disso é o caso da "Escola de Base").
Em resumo (e voltando ao tema), o ex-ministro já havia passado por esse processo depreciativo mesmo sem a existência do processo. Sendo assim, não há como não perguntar: ao rejeitar a denúncia, que mal se está evitando?
Claro que o raciocínio é simplista - existem consequências políticas da "continuidade" do processo e, ante a inexistência de qualquer prova de sua participação no crime, pode não ser razoável manter um processo, em que se movimenta toda uma estrutura, para que, ao final, chegue-se a lugar nenhum (pela falta de prova).
Bem! Não existe resposta! O objetivo é refletir a respeito. A princípio, minha opinião - como cidadão (e pra todos os casos e não especificamente esse) - é de que devemos evitar "punir" alguém com o processo.
***
Não dá pra não comentar a opinião de um advogado na Folha, segundo a qual, "quem feriu a ética da profissão foi o caseiro". O coitado - que deve ser o mais inocente na história - nem emprego consegue - e alguém vem dizer uma coisa dessas.

3 comentários:

  1. L.
    Vou discordar sob um aspecto. Se existem provas suficientes de autoria, como vc mesmo disse, não saberemos jamais. De qquer maneira, "justificar" a negativa dos ministros sob o argumento de que o deputado estaria suficientemente reprovado pelas consequencias provenientes da divulgação do crime, parece-me garantismo demais. Não se trata de um "homem-comum" cometendo um crime de relevância superficial, mas de um ex-ministro violando direitos individuais de um terceiro. Considerando a possibilidade da prática do ato, presume-se que ele soubesse exatamente oq fazia e quais as consequencias do seu ato ilícito (ainda que não acreditasse na - realmente improvável -punição). Oq eu quero dizer é que, sustentando um alto cargo na política, conhecedor das leis e suas sanções, não poderia simplesmente ignorar oq porventura adviesse de um escândalo.. oq de fato aconteceu. Tratá-lo agora como "vítima" é ignorar-lhe as condições pessoais. Enfim, se havia a justa causa, se haviam provas suficientes para a instauração do processo, não saberemos. Mas relevar o "sofrimento moral" que ele já tenha sofrido para afastar eventuais prejuízos que ele viesse a sofrer com o processo também não me parece compatível com a posição que ele sustentava e sustenta até hoje (do ponto de vista do que é justo, afinal, do ponto do vista da conveniência política esse tipo de decisão é extremamente adequada).
    Ps: repetindo oq já lhe disse, parabéns pela iniciativa! Janela para o conhecimento. Abs,Thayse

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  2. Thayse, o que eu quis dizer é que acho que é possível defender a recusa a uma denúncia em razão da ausência de lastro probatório mínimo - quem quer que seja o denunciado - uma vez que o direito penal deve se ocupar apenas do que há de mais relevante e quando há possibilidade de punição (caráter fragmentário) e tendo em vista que nosso sistema não permite a pena processual (e o processo, em si, pode consistir numa sanção). Mas, nesse caso em específico, acho que o argumento de "constrangimento processual" fica debilitado pelo fato de que o denunciado já sofreu constrangimento ainda maior do que o sofreria ao ser processado (além da maior responsabilidade que se deve exigir dos homens públicos). Assim, acho que nesse caso, se justificaria o recebimento da denúncia.

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  3. Acho esse mesmo um ponto interessante. E ele nao é excecao nesse caso. Aplica-se certamente a boa parte dos chamados crimes do colarinho branco. A repercussao, nesses casos, costuma ser por si só a razao do constrangimento, de modo que nao julgar nao evitaria dano muito maior (salvo, é claro, um prolongamento do constrangimento e das restricoes a que se submetem os réus- sejam de ordem jurídica- bloqueio de bens, apreensao do passaporte - sejam de ordem política- ficha limpa para concorrer às próximas eleicoes, por exemplo). Talvez só este aspecto já justifique a opcao por restringir o recebimento da denúncia... talvez nao... é realmente uma situacao complicada, que é em grande parte potencializada pela demora dos nossos processos.Ivens

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