domingo, 23 de agosto de 2009

Lei da Anistia, 30 anos! - Parte 1

A Lei n. 6.683/79 completa 30 anos sendo questionada por meio de ADPF ajuizada pelo Conselho Federal da OAB, em outubro passado. Em meio a tal situação, gostaria de fazer algumas considerações, desde já dispondo-me a questionamento, bem como me comprometendo a aprofundar a reflexão.

1) As "feridas" estão fechadas?

Parece-me que não!
Não tenho dúvida que, no momento em que foi editada, a Lei de Anistia era necessária - ou, tolerável - para criar condições para o processo de redemocratização.
No entanto, ninguém poderia supor que as feridas criadas durante o período da ditadura militar poderiam ser apagadas por um ato legislativo. A existência de questionamentos periódicos partindo da sociedade civil, as iniciativas do Estado brasileiro voltadas a criar "compensações" às vítimas do regime e mesmo a infeliz tentativa - vez ou outra - de se desqualificar cidadãos, atribuindo a estes a pecha de "terroristas", porque lutaram (talvez, com mais força do que seria "razoável") contra o regime, são sinais evidentes de que há um saldo a ser enfrentado!
Exemplo interessante - e relativamente recente - de um processo de enfrentamento desse tipo foi dado pela sociedade sul-africana, no período que sucedeu ao fim do Apartheid.
O Apartheid, recorde-se, consistia em verdadeira "política pública" de segregação racial (com raízes históricas que remontam à colonização européia, em especial, conflitos por território entre os colonizadores, ocorridos no século XIX). Entre outros absurdos, proibia à maioria negra a propriedade da terra ou o exercício de direitos políticos, vedava relacionamentos inter-raciais, restringia o acesso dos negros ao mercado de trabalho e criava zonas residenciais exclusivas para brancos.
Com o fim desse regime, na década de 90, a sociedade sul-africana necessitava reconciliar-se. No entanto, a dificuldade era encontrar a medida correta entre o perdão - que visava evitar revanchismos de qualquer espécie e poderia mergulhar toda a nação numa conflituosidade permanente - e a justiça - que clamava a apuração de responsabilidade ou, ao menos, da verdade encoberta pelos desmandos do governo da minoria branca em meio ao Apartheid.
A opção foi pela criação da Comissão da Verdade e Reconciliação. O objetivo dessa comissão era o enfrentamento do passado e o reconhecimento da "verdade" existente por trás do regime. Numa síntese bastante simplista (pela qual, de antemão, desculpo-me), a comissão investigava os diversos crimes perpetrados durante o Apartheid - utilizando-se, dentre outros meios, do oferecimento da anistia àqueles que compareciam e reconheciam seus atos - e buscava compensar as atrocidade cometidas - através da recomendação de reparações às vítimas do regime.
No caso de anistia pela comissão, ficava interditada qualquer possibilidade de responsabilização.
Evidente que alguns poderão dizer que o resultado final não difere da anistia geral e irrestrita. No entanto, uma diferença é incontestável: esse procedimento não impõe o esquecimento! A vedação à responsabilização daqueles que cometeram os crimes fundamentava-se na necessidade de criação de uma sociedade "reconciliada", objetivo da nação sul-africana enunciado em sua Constituição.
Convém pontuar que o processo enfrentou dificuldades (dentre outros, décadas de crimes perpetrados tendo que ser investigados em tempo relativamente curto, criminosos comuns buscando valer-se da possibilidade da anistia, um suposto desequilíbrio entre o perdão aos criminosos e as reparações às vítimas) e ainda há muito a ser feito pelos sul-africanos para minimizar as terríveis desigualdades que resultaram do regime de segregação, mas, não há dúvida de que restou um saldo positivo: o acompanhamento do processo e a sua discussão por todo o povo permitiram que se criassem bases para a "reconciliação" pretendida, e a construção de uma sociedade que conhece claramente sua história.
Opção muito diferente foi aquela adotada por nós, brasileiros.
A anistia concedida em 22 de agosto de 79 (e, naquele momento, muito comemorada, pois representava o perdão de centenas de opositores do regime - milhares, caso sejam considerados todos aqueles que estavam exilados) representou o encobrimento de todo e qualquer crime cometido pela ditadura.
A opção, claramente, foi pelo esquecimento.
É evidente que existem diferenças cruciais entre o Apartheid e as ditaduras sul-americanas e a transposição de modelos - políticos, sociais ou jurídicos - sem o cuidado de se observar as diferenças históricas e de contexto é muito perigosa.
Mas, destaque-se que, mesmo quando comparados aos nosso vizinhos, a solução brasileira é a mais tímida e, aparentemente, (reafirma-se!) comprometida com o esquecimento.
Argentina, Chile e Uruguai também tiveram suas leis de anistia. No entanto, estas leis foram posteriormente afastadas: em 2005, a Suprema Corte da Argentina declarou a inconstitucionalidade da lei "do Ponto Final", de 1987, e "da Obediência Devida", de 1988, que impediam ações judiciais contra os perpetradores de detenções ilegais, torturas e assassinatos durante o regime militar; no Chile, lei afastou a aplicação da anistia aos crimes contra a humanidade, reforçando entendimento que já vinha sendo adotado pelo judiciário do país; e, no Uruguai, o Congresso, em ato chancelado pela Suprema Corte de Justiça, aprovou a anulação da lei de anistia. Para citar, ainda, exemplo relacionado a uma ditadura mais recente, a justiça do Peru condenou o ex-presidente Alberto Fujimori a 25 anos de prisão, por crimes cometidos na repressão a opositores do regime.
Sem falar que "comissões de reconciliação" instituídas em nossos vizinhos (notadamente, Chile e Argentina) cumpriram importante papel no reconhecimento público dos desmandos das suas respectivas ditaduras.
Parece evidente (até pelas razões já citadas no início desse texto) que a opção pelo esquecimento não foi capaz de fechar - ou, ao menos, amenizar - as feridas deixadas pelos anos de ditadura militar.
Como mencionado anteriormente, o saldo - mínimo, que seja - que podemos encontrar no processo sul-africano, foi o reconhecimento da verdade.
É esse o mínimo que devíamos pretender para que não sejamos iludidos por manifestações equívocas - quando não, mal intencionadas - que chegam a qualificar de "ditabranda" o período histórico pós-64.
Não creio - repito - que as feridas estejam fechadas!
E entendo que não podem ser fechadas sem que a nação brasileira enfrente o problema.
Precisamos conhecer - sem qualquer maquiagem ou abrandamento - a nossa história, até para não corrermos o risco de vermos repetidos os mesmos erros.
Pra finalizar, interessante a tese de Paulo Sérgio Pinheiro, segundo a qual, a falta de um acerto de contas com a ditadura - em razão da lei de anistia - cria uma cultura de impunidade institucional, favorável às práticas de tortura e execuções sumárias, identificadas em nossas polícias civis e militares.
Seja, portanto, pelo conhecimento pleno e verdadeiro de nossa história, seja pelo aprimoramento futuro de nossas instituições, com vistas a uma maior maturidade democrática, impõe-se a discussão quanto à anistia!

2 comentários:

  1. Boa L.!! Grande idéia, parabéns. De alguém como vc a criacao de um blog é muito bem vinda! Tenho certeza que aproveitarei bastante seus comentários aqui! E comentarei também, na medida do possível, e independentemente de eu falar bobagem por nao saber nada do tema ou por minha opiniao fundamentada ser uma grande bobagem ... Pelo simples prazer de discutir! Nao li ainda o texto, mas o farei assim que possível! Abs!Ivens

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  2. Olá Lincoln:
    “Impunidade institucional” é a expressão que no meu ponto de vista resumiu o seu pensamento. E é essa mesma “impunidade” que demonstra o passado e o presente do Brasil. As instituições estão a cada dia mais enfraquecidas por falta de interesse das pessoas em querer conhecerem o passado para mudar o presente.
    Este texto ainda faz um link com o texto sobre reforma agrária, de forma que oportunistas se aproveitam da falta de interesse e conhecimento popular sobre o assunto. Se há uma lei com nova regulamentação para as propriedades produtivas, com quase certeza (pois ainda não perdi as esperanças), há alguém lucrando de forma desordenada.
    Enfim vou esperar a segunda parte deste texto sobre anistia.

    Roberta
    roberttaoliveiraa@gmail.com

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